quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

O preguicista

Por A. J. Lucas Camargo.

— Por hoje, CHEGA!

O desabafo era normal e perfeitamente compreensível após uma jornada de estafante labuta. Mas dizer uma frase dessas no comecinho do expediente, logo depois de assinar o ponto... Alguma coisa não ia bem com o Hilário.

Aliás, desde aquele dia fatídico em que seu caixa acusara uma inexplicável falta de duzentos cruzeiros, ele estava irreconhecível. Vendendo às pressas, na bacia das almas, os poucos bens que possuía, tinha conseguido repor o dinheiro sem recorrer à ninguém. Não aceitou qualquer auxílio. Agüentou firme, sozinho. Manteve intactos sua dignidade e seu orgulho. O mesmo, porém, não se poderia dizer de seu juízo.

Antes da ocorrência, Hilário merecia com toda a justiça o título de "bancário-padrão". Sempre pontual, cortês, eficiente, disposto a tudo que contribuísse para o bom andamento dos serviços, não se esquivando sequer a vir fora de seu horário normal de trabalho para colaborar no esclarecimento de uma diferença ou na atualização de um levantamento.

Seu guichê era o preferido pelos clientes, que gostavam de seu atendimento rápido, seguro, personalizado. Se pecava, às vezes, era pelo excesso de zelo. Como naquela ocasião em que, por iniciativa própria, bolou e começou a pôr em prática uma campanha para atrair mais gente ao seu guichê. Esmerou-se ainda mais em sua bem cuidada apresentação pessoal, colocou um pequeno vaso de flores ao lado da máquina autenticadora, e colou no vidro do guichê pequenos letreiros com dizeres como: "Obrigado pela preferência. Volte sempre", "Prefira esse guichê: informações grátis; preenchimento de cheques grátis; clips grátis", "Desconte seu cheque aqui e ganhe de brinde um valioso elástico", "O dinheiro desse guichê tem a garantia da Casa da Moeda. Cuidado com imitações".

Quando poucos dias depois após o encerramento do semestre, ele apareceu com um cartaz anunciando: "Hoje, neste guichê, monumental liqüidação dos saldos de balanço do banco. Breve: quinzena do troco", o subgerente achou conveniente moderar-lhe o entusiasmo. Hilário sentiu-se frustrado, incompreendido. Mas seu espírito de disciplina prevaleceu, e ele prontamente encerrou sua mal iniciada campanha. Em compensação, redobrou seu empenho no atendimento. Não admitia que nenhum colega conseguisse autenticar mais papéis, atender a mais clientes do que ele.

O dia em que conseguiu o recorde absoluto de atendimento... foi também o dia em que aconteceu a diferença de duzentos mil. Não houve meio de localizá-la. Talvez tivesse pago com pacotinhos de notas de quinhentos pensando que fossem de dez, quem sabe algum espertinho tinha surrupiado o dinheiro num momento de distração... o jeito foi repor do próprio bolso o dinheiro faltante em sua caixa.

Hilário ficou arrasado. Mais do que o prejuízo financeiro, doíam-lhe a falha, o desmoronamento de um castelo de eficiência e segurança, de uma reputação de funcionário perfeito construída ao longo de quinze anos de uma carreira sem mácula.

Sentiu-se tão abalado que, poucos dias depois, pediu dispensa do cargo de caixa. Aconselharam-no a pensar melhor, a tirar umas férias. Ele aceitou a sugestão. Andou por Parati e Salvador, esteve nas Cataratas de Iguaçu e na festa do Vinho de Caxias do Sul. E de Bariloche mandou um requerimento para que lhe concedessem, adiantadamente, mais um período de férias.

***

Assim, dois meses após a tragédia, Hilário reaparecia na agência. Era um novo Hilário. Trocara seus ternos sóbrios de executivo de alto nível por um espalhafatoso e colorido traje esporte. Estava queimado de sol, um pouco mais gordo, sorridente, conversador. José Luís, o subgerente, deu um suspiro de alívio: chegara a temer que o desditoso funcionário não conseguisse recuperar-se do abalo sofrido com o doloroso transe. Hilário aproximou-se da mesa da subgerência:

— Zéluis, desejo falar com você. Pensei muito. Não quero mesmo continuar caixa. Tá aqui meu pedido de dispensa de cargo.

— Bem, se você pensou bem, se é isso mesmo que você quer... Vamos ver, então, onde podemos colocá-lo. O que é que você sabe fazer melhor?

— Bem, Zé... sei fazer quase tudo: toco um pouco de violão, jogo um futebolzinho razoável e aprendi a esquiar em Bariloche. Mas eu sou bom mesmo é no truco. Topa um joguinho agora? Tenho um baralho aqui no bolso... Com o Rui e o César dá pra formarmos uma parceirada boa.

O subgerente conseguiu, a custo, dissimular seu espanto. Bom psicólogo, achou melhor não forçar a barra. Com o tempo aquilo deveria passar. Resolveu pô-lo a trabalhar na Retaguarda da bateria de caixas, seção onde o chefe era compreensivo e paciente. Ele tentou um incentivo:

— Agora sim, Hilário. Com você, esta seção vai pra frente!

— Besteira, Joaquim. Quem tem que ir pra frente é a vanguarda. A função da Retaguarda é ficar atrás. Pode contar comigo para segurá-la.

***

No fim do dia, José Luís foi falar com Joaquim:

— Como está saindo o Hilário em seu setor?

— Por enquanto não sei: hoje ele não fez nada. Passei uma listagem de computador para anotar, e ele me perguntou: "— Joaquim, o que é essa papelada: um catálogo, um monólogo ou um epílogo?", e se pôs a rir como um doido.

— Tenha paciência. Deixe passar o tempo. Logo ele será novamente nosso braço direito, o esteio, a viga mestre desta agência.

***

No dia seguinte, o relatório de Joaquim foi ainda mais inquietante:

— Hoje também ele não fez nada. Ou melhor: fez. Trouxe quatro castiçais e disse que era absolutamente necessário acender velas para o arquivo morto. A custo consegui dissuadí-lo, lembrando o perigo de incêndio. Então ele se propôs organizar uma lista dos funcionários por ordem de vencimento.

— Ué. De que jeito?

— Eu também achei absurdo: funcionário não é duplicata para ter prazo de vencimento. Ele não se perturbou: "— Muito me admira vocês não saberem fazer uma coisa tão simples. É por isso que estão na retaguarda. Ordem de vencimento é assim: os funcionários que ganham vencimentos maiores primeiro, depois os que ganham um pouco menos, e assim por diante. Cáspite! Centrífugo, vermífugo, hidrófobo!". Adquiriu a mania dos proparoxítonos.

— Paciência. Isso vai passar.

— É bom que passe logo. Estou ficando preocupado. Uma hora ele veio queixar-se "— Joaquim, a gravadora está olhando feio pra mim. Dá um jeito nela, sim?". Além da mania dos proparoxítonos, a dos versinhos...

— Bom, ele nunca se deu muito bem com a Judith mesmo... e, reconheçamos, aquele olhar vesgo dela...

— Mas o diabo é que ele não estava falado da Judith, a funcionária. Quem ele achava que estava olhando feio era a máquina gravadora, a Audit. Depois passou boa parte do dia somando o Almanaque do Pessoal e ficou furioso porque segundo dizia, o total não estava batendo.

— Batendo com quê?

— E eu sei? Em resumo: já são dois dias que a produção do Hilário é um nada absoluto.

***

Por isso, quando, no dia seguinte, Hilário começou o expediente dizendo "Por hoje chega", José Luís achou melhor convidá-lo para uma conversa.

— Quequiéisso, Hilário! Você nem começou e já quer parar?

— Tenho que parar, Zé. Preceito de minha religião. Eu agora me tornei um preguicista.

— Preguiçoso, você quer dizer?

— Você está por fora. São duas coisas totalmente distintas: o preguicista é um preguiçoso por convicção, por escolha, não por temperamento. Epígrafe, apóstrofe, limítrofe. O preguicismo é a indolência científica. Tem apoio nas grandes correntes filosóficas de todos os tempos.

— Então... eram preguicistas Sócrates, Platão, Abelardo, Kant, Schopenhauer, essa gente toda?

— Em que agência trabalham esses caras? São comissionados?

— Você falou em filósofos...

— E eu lá conheço algum filósofo, filântropo ou filípico?

— Você disse...

— Quando eu falo não estou dizendo nada: estou apenas compondo frases. O preguicismo é uma doutrina econômica. "Laissez faire, laissez passer" foi um de seus enunciados. Se ninguém atrapalhar, "le monde va de lui même", o mundo anda sozinho.

— Sinceramente, Hilário, acho que você está procurando cobertura ideológica para sua preguiça...

— Procurando nada: o preguicismo foi que me procurou. Nunca disse a ninguém, mas essa frase "le monde va de lui même" ficou pulando dentro de mim desde que fui apresentado a ela, nos tempos do colégio. Se a gente não atrapalhar, as coisas realmente importantes andam sozinhas. As florestas se renovam, os animais se reproduzem, a natureza encontra seu ponto de equilíbrio por si mesma, desde que a gente não interfira no processo derrubando árvores, exterminado a fauna e destruindo em minutos obras que a natureza levou séculos para criar.

— Mas o trabalho...

— A era do "homo faber" terminou; viva o "homo ludens"! Todo o mal do mundo vem do trabalho. O índio conseguiu viver muito bem quase sem trabalhar: sua suprema sabedoria consistia em deixar que a natureza trabalhasse para ele. Já o homem branco, incapaz desse relacionamento harmônico com a natureza, queria que o índio trabalhasse para ele. Trabalhar é um treco tão pernicioso que as ruas estão cheias de placas dizendo: "Perigo. Homens trabalhando". Aférese, apócope, torácico. Na vida, trabalhar ou ficar à toa, apanhar ou bater, ganhar ou perder, dá tudo na mesma.

— Essa não, Hilário. Você quer dizer...

— Isso mesmo. Veja aqui no banco: quando você vai falar em título vencido, você diz que ele venceu, não é mesmo?

— Bom, mas aí...

— É. E todo dia você fica quebrando cabeça e só sossega quando consegue fazer o apanhado bater. Ora, apanhado tem de apanhar, e não bater. Se bateu, não é apanhado; é batido. Mais: vocês dizem que balanço é um resumo do movimento. É simplificar demais as coisas. O movimento é muito mais complexo que um simples balanço pra cá e pra lá. Há movimentos para baixo, para cima, para o lado, o movimento giroscópio, o "moto-perpétuo", o movimento das massas, o movimento de alfabetização...

— Tá bom, Hilário, tá bom. Você tem razão. Agora me dê licença um minutinho, que preciso levar um papo com o gerente.

— Só mais um instante, Zé. Tenho mais duas coisas pra falar com você.

— Fale rápido. O que é?

— Só que... uma eu não me lembro. A outra... a outra eu esqueci.

— Tá. Então depois você fala. Por enquanto, veja se pode ajudar um pouco o Joaquim.

— Vou indo. Só que se a gravadora continuar a olhar para mim daquele jeito eu não me responsabilizo pelos meus atos.

***

Chegou-se para os lados de Joaquim:

— Quincas, você por acaso está à toa?

— Claro que não. Estou cheio de serviço.

— Então não posso atender ao Zéluis. Ele queria que eu ajudasse você, mas o preguicismo só admite que a gente ajude os que nada têm a fazer.

— Mas você não pode ficar nessa inatividade, Hilário. Viver é lutar.

— Lutar é besteira, Joaquim. Sempre que há luta, para um vencedor que fica posando, sorridente para fotografias e desfilando sob arcos do triunfo, há vários que ficam rangendo os dentes e preparando a vingança. A luta leva a outra luta, a guerra a outra guerra. Os preguicistas, os indolentes, os dorminhocos, jamais invadiram um país, jamais provocaram uma guerra: sempre a iniciativa foi de homens de ação, dos lutadores de que você tanto gosta. Não, Joaquim. Viver não é lutar. Viver é dormir. Dormir, talvez sonhar, como diz o Hamlet.

Foi a vez de Joaquim tentar a gozação:

— Hamlet? Em que agência trabalha esse cara?

— Pois se eu estou lhe dizendo que ele é um preguicista! Não trabalha em lugar nenhum. Esdrúxulo, fantástico, ridículo.

***

À tarde, ao fazer seu habitual relato a José Luís, Joaquim quase arrancava os fios da barba:

— Acho que não tem jeito, Zé. Para mim, o melhor é internar logo esse cara. Senão, quem acaba ficando louco da cabeça sou eu. Já tentei de tudo. Houve uma hora em que ainda tive uma esperançazinha de vê-lo decidir-se agarrar no batente. Foi quando ele me disse: "— Agora vamos arregaçar as mangas, Joaquim". Ora, todo mundo, quando fala isso, é porque vai meter a cara no serviço. Mas na fase atual de Hilário, as palavras têm um sentido muito literal: realmente, ele tirou as abotoaduras e continuou sem fazer nada... de mangas arregaçadas. E me obrigou a arregaçar as minhas também. Eu não agüento mais.

— Só mais um pouco de paciência, Joaquim. Afinal, durante muitos anos o Hilário se devotou inteiramente ao banco: merece que o banco se sacrifique um pouco por ele. Vamos tentar uma nova técnica: comece a lhe passar bastante serviço. Coisas não muito urgentes, mas volumosas. Encha o homem de papel. Ele nunca em sua vida deixou serviço acumular, e certamente seu brio provocará uma reação.

Assim foi feito. Mas no fim do dia, Hilário simplesmente colocou a papelada na gaveta, sem tomar providência alguma. José Luís mandou insistir na estratégia. Assim, depois de alguns dias, a mesa de Hilário estava com as gavetas transbordando de papéis, quase não fechavam mais. E o preguicista, tranqüilo. Nenhuma preocupação, nenhum nervosismo, nenhuma reação. No início do expediente do quinto dia da "experiência", ao encontrar sobre a mesa mais um maço de títulos, fichas, partidas, Hilário foi falar com Joaquim:

— Quincas, você precisa tomar uma providência. Estou com serviço demais, as gavetas estão estourando de tanto papel, olhe aí.

Joaquim exultou. Finalmente, uma reação. Os brios de Hilário tinham prevalecido; ele voltava a se interessar pelo serviço. Começava a recuperação. Resolveu incentivar:

— É. você tem razão, Hilário. Vejo que suas gavetas estão abarrotadas. Você, naturalmente, quer que eu mande alguém ajudá-lo a pôr o serviço em dia, não é isso?

— Não, não, Joaquim. Eu não preciso de ninguém para me ajudar, não. Pode me mandar serviço à vontade. Eu só quero é que você me arranje mais gavetas, Joaquim, mais gavetas para guardar a papelada. Gramática, estatística, Antártica. Ah, Quincas, lembrei que hoje é o dia de meu aniversário.

— Parabéns, Hilário. Precisamos comemorar isso.

— Você acha? Muito Obrigado. Então... posso dar uma idéia? Que tal realizar uma parada em minha homenagem?

— Assim também não dá, né Hilário? Imagino só a cena: o gerente abrindo o desfile com a bandeira, os caixas rufando atrás, os escriturários apresentando as armas, isto é, as esferográficas, os menores portanto faixas "Parabéns, Hilário", "Hilário merece nosso amor", e você ali no palanque, digo, na plataforma, acenando para o povo e batendo continência de vez em quando? É isso que você quer ue a gente faça, uma parada como a do Sete de Setembro?

— Nada disso, Joaquim. Você está por fora. Esse tipo de parada já era. O que proponho é um parada de verdade: todo mundo pára de trabalhar, a gente fecha a agência e vamos todos tomar uns chopes lá no bar do Lídio. Eu pago.

***

Talvez tenha sido a ressaca dos chopes no Lídio, talvez a mudança de lua, nem o dr. Paulo Arruda soube explicar direito: no dia seguinte o caso de Hilário agravou-se assustadoramente. Compareceu ao banco vestindo uma camisa do Bradesco (fazendo propaganda do concorrente, justo ele tão fiel à casa em que sempre tinha trabalhado!); logo depois de assinado o ponto, pegou o carimbo de "Inutilizado" e passou a tatuar-se com ele furiosamente na testa, nas faces, nos braços, na roupa...

***

Aposentado por invalidez, depois de um longo tratamento, Hilário vive hoje tranqüilamente numa modesta mas confortável casinha perto da praia.

Passa os dias a cuidar de um pequeno jardim e de uns poucos canários e pintassilgos. Aos amigos que continuam a visitá-lo, mostra orgulhoso uma pilha de livros e conta, às vezes, das pesquisas que vem realizando para estabelecer em livro os fundamentos filosóficos do preguicismo, doutrina que adotou definitivamente e em cuja divulgação tenciona empenhar-se com a dedicação de um apóstolo. Já conta com um bom número de prosélitos que fizeram dele seu guru.

Oficialmente é considerado doido, um simpático e inofensivo doido. Parece feliz.

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